Provavelmente você já ouviu falar em meritocracia, mas afinal, a meritocracia existe? Muito se discute sobre o tema que divide opiniões.
O que é meritocracia? Como ela surgiu? Neste conteúdo você poderá tirar todas as duas dúvidas. Vamos lá?
O que é meritocracia?
A meritocracia é a ideia de que, independente do contexto social em que a pessoa está inserida, seu sucesso individual está ligado apenas a seu esforço e aptidões pessoais. Significa, portanto, que a capacidade de prosperar e de atingir os objetivos profissionais desejados está estritamente vinculada ao empenho que cada indivíduo vai dispor para tal.
Nesse sentido, essa perspectiva valoriza o indivíduo e apenas suas próprias ações são determinantes para que tenha sucesso em sua ocupação. No campo político, o espectro à direita se apropriou desse modelo para defender que, dessa forma, a ascensão social seria resultado do empenho e dedicação dos indivíduos entre si.
Entretanto, será que apenas a partir do esforço individual, com trabalho, foco e determinação as pessoas conseguiriam atingir suas expectativas e serem bem-sucedidas? O contexto social em que os indivíduos estão inseridos não são também fatores que devem ser levados em consideração?
No Brasil, frente a tantas desigualdades sociais, seria esse o modelo que viabilizaria o aumento de renda e da qualidade de vida das populações mais pobres?
Onde surgiu a meritocracia?
Entre 1789 e 1799 ocorreu, na França, um processo revolucionário de caráter burguês que dissipou a monarquia absolutista: a Revolução Francesa. Resultado de uma crise política, econômica e social, transformou a humanidade.
A luta reivindicava o fim dos privilégios que moldavam o antigo regime francês, organizado em uma sociedade estamental em que os altos cargos públicos eram hereditários, portanto não havia possibilidade de mobilidade social.
Em oposição a isso, a Revolução Francesa rompeu com o princípio feudal de organização social e iniciou a consolidação do sistema capitalista. Nessa transição, proclamaram a Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, que pautava a universalização do princípio de igualdade civil.
A partir daí, entrou em voga o discurso acerca do mérito pessoal como forma de justificativa para a ascensão social de alguns e o declínio de outros. Tendo em vista que agora todos eram considerados iguais perante a lei, o discurso meritocrático serviu para justificar a desigualdade social.
Na atualidade, corroborando com a ideologia meritocrática, o individualismo neoliberal reforça a ideia do homem voltado apenas para si próprio e o capitalismo compreende esse ambiente de competitividade em que o mais esforçado será posteriormente recompensado por seu empenho.
Em 1832, nos Estados Unidos, Henry Clay, no senado americano, cunhou o termo “self-made man”, que significa o homem que por seus próprios méritos e sem ajudas externas alcança seus objetivos e vive o American Dream, o sonho americano, ou seja, a ideia de uma vida dos sonhos para aqueles que trabalharam duro em uma sociedade sem obstáculos para o sucesso.
Racismo: fator fundamental na construção da sociedade brasileira
O discurso meritocrático afirma que o contexto social que estamos inseridos não é relevante para alcançarmos uma condição social de prestígio econômico e político. Entretanto, será que é bem assim? Todos os indivíduos na sociedade têm as mesmas chances e oportunidades para obter sucesso? Não existem fatores históricos e sociais que colocariam alguns indivíduos em situação de maior vantagem sobre os outros?
No Brasil, no dia 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinou a lei Áurea, que formalmente aboliu a escravidão. Nesse momento, os ex-escravizados não receberam qualquer auxílio governamental para serem inseridos na sociedade como trabalhadores formais assalariados.
Além disso, no debate público o que predominava era a utilização de mão de obra de imigrantes europeus, e o governo não mediu esforços nas iniciativas para atraí-los.
Essa onda de imigração foi fortemente apoiada entre os intelectuais e as elites políticas brasileiras, que defendiam o embraquecimento da população e estigmatizavam o trabalhador livre nacional como “dominado pela preguiça” e “avesso ao trabalho”.
O significado do fim da escravidão, portanto, ao invés de incluir os negros no mercado formal no recente sistema capitalista brasileiro, se transformou em mais uma violação dos direitos dessa população, que na transição para homens livres foram novamente excluídos e criminalizados.
Sendo obrigados a concorrer em condições desiguais com os imigrantes europeus, os ex- escravizados africanos, sem apoio governamental, enfrentaram diversas dificuldades para se inserirem na sociedade civil como cidadãos brasileiros. Além disso, evidencia-se também a forte discriminação racial a que foram sujeitados e que perdura até os dias de hoje.
Durante três séculos os negros no Brasil vivenciaram condições desumanas nas mãos dos senhores de terra e empresários, e ao fim desse quadro de injustiça, surgiram outros problemas: a impossibilidade de inserção no sistema capitalista após a abolição da escravatura e a não realização de uma reparação histórica frente às injustiças cometidas contra essa população.
A herança colonial no Brasil para a população negra revela uma condição social que não é possível de ser superada individualmente, pois o contexto social que grande parte dessa população enfrenta é desigual em relação à população branca, que não é constantemente alvo das investidas policiais, não têm acesso limitado ao sistema de ensino, não vive predominantemente em áreas sem saneamento básico, sem acesso à saúde e com habitação precária, fatores que fazem parte da realidade da maioria da população negra no Brasil.
Essa desigualdade não é capaz de ser superada apenas através do mérito próprio, pois faz parte de um projeto político de marginalização, exclusão e criminalização inerente ao capitalismo.
A meritocracia e a desigualdade social
Tendo em vista os processos que se sucederam no Brasil, como a colonização e a subsequente escravização da população negra, a recompensa através do mérito individual reforça ainda mais as desigualdades históricas vivenciadas pelos brasileiros ainda na contemporaneidade.
Como foi demonstrado, sem o apoio do Estado na transição para a condição de homens livres, os negros tiveram grandes dificuldades para se integrar na sociedade como trabalhadores livres. Além disso, o fim do império e a proclamação da república não extinguiu os privilégios que reinavam no regime monárquico.
No dia 15 de novembro de 1889, no Rio de Janeiro, o golpe militar que pôs abaixo o Império logo se organizou em um corpo político temporário, chamado Governo Provisório, e obrigou a família imperial a deixar o país.
Entretanto, apesar do regime republicano pressupor a instauração de uma democracia, tendo com base a participação popular no sistema representativo, isso não ocorreu até 1940.
O povo praticamente só assistiu à tomada do poder pela tropas militares, e assim a República brasileira foi promulgada através do golpe dirigido pelo marechal Deodoro da Fonseca, que veio a ser o primeiro presidente do Brasil.
Sendo assim, desde o início do sistema republicano no Brasil, a falta de participação popular abriu portas para a manutenção dos privilégios que já existiam anteriormente no Brasil imperial.
Um dos exemplos mais relevantes consiste no fato de que não houve uma redistribuição de terras no Brasil, e a classe dominante composta pelos senhores de terra praticamente se manteve intacta.
Movidos pela política agroexportadora principalmente de café, açúcar e ouro, essa elite agrária conseguiu manter a estrutura fundiária até os dias de hoje. Essa política conservadora contra a reforma acentuou as desigualdades sociais e contribuiu para a concentração de renda e riqueza no país.
Diante dessa configuração política, é impossível pensarmos em uma sociedade meritocrática, pois via de regra as particularidades vivenciadas pelos indivíduos de acordo com sua condição social são fundamentais para o estabelecimento de suas prioridades.
Em uma família que vive em condição de extrema pobreza, costuma-se adotar estratégias a curto prazo para reduzir os efeitos da pobreza ou para que não se agrave o seu grau de carência e vulnerabilidade.
Por conta disso, nem sempre as prioridades de pessoas mais pobres são as que as transformam em potenciais competidoras numa sociedade meritocrática.
Por outro lado, os esforços de famílias de classe média ou alta se voltam para planos a longo prazo, que, por exemplo, podem investir em escolas particulares, o que, muitas vezes, aumenta as possibilidades de seus filhos serem bem sucedidos em suas escolhas profissionais.
Além disso, as famílias mais abastadas detêm o que o sociólogo Pierre Bourdieudenominou como capital, que na sua teoria sociológica significa poder. Para ele, em uma sociedade estratificada como a nossa, existem ativos econômicos, culturais e sociais que se reproduzem em uma sociedade de poder que facilitam ou dificultam a mobilidade social dos indivíduos dependendo de sua classe social.
Em outras palavras, a posição social de um indivíduo na sociedade depende do acesso que ele terá a esses capitais, tendo em vista que a estrutura social seria “(…) como um sistema hierarquizado de poder e privilégio, determinado tanto pelas relações materiais e/ou econômicas (salário, renda) como pelas relações simbólicas (status) e/ou culturais (escolarização) entre os indivíduos.
Dessa forma, a diferente localização dos grupos nessa estrutura social deriva da desigual distribuição de recursos e poderes de cada um de nós”.
Em suma, os três principais capitais (econômico, social e cultural) elaborados por Bourdieu se articulam e constituem uma rede em que os privilégios se mantêm, dificultando a mobilidade social.
A meritocracia, nesse caso, seria novamente inviável pois alguns indivíduos já teriam maiores possibilidades de obter sucesso por estarem em famílias que detêm esses capitais.
A competição em uma escalada ao sucesso já estaria vencida, pois ao deter esses capitais o indivíduo já faz parte de um grupo de prestígio social, econômico e cultural.
Meritocracia no Brasil: é possível?
De acordo com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o tempo que um brasileiro nascido entre os 10% mais pobres do país levaria para alcançar a renda média da população é de 225anos.
Uma pesquisa demonstrou, também, que são necessárias nove gerações para que o membro de uma família carente conquiste uma condição melhor.
Sendo o Brasil um dos países mais desiguais do mundo, e sendo a meritocracia um sistema que teoricamente pressupõe uma competição entre iguais, em que os indivíduos tenham as mesmas condições sociais, psicológicas e financeiras, não seria razoável acreditarmos que esse modelo de organização social poderia promover a mobilidade social que a ele esta associada.
Dado ao contexto histórico e social, nenhum brasileiro em situação de vulnerabilidade e pobreza é responsável por sua condição. Isso porque a meritocracia, para ser válida e para que não seja injusta, deve propiciar a todos os indivíduos as mesmas oportunidades.
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