Entenda o que é niilismo e quais suas consequências na vida e na filosofia
A palavra Niilismo vem do latim nihil e significa nada. Comumente ligado ao comportamento e a ética, pode se classificar o niilismo como uma corrente ou doutrina filosófica, mas também como uma postura, uma atitude frente a vida. De fato, é mais comum ouvir sobre essa postura do que sobre a corrente filosófica em si, mas a verdade é que são indissociáveis.
No século XIX o conceito de niilismo foi mobilizado para se referir a questões da esfera social, como a indiferença política e religiosa. Ocorre em várias áreas da vida humana, como artes, ciência e moral. É bastante difundido na Rússia, contando com figuras como Dostoiévski.
1 – Niilismo e Filosofia
O niilismo se configura numa negação da vida. O niilista é o indivíduo que encara a vida com indiferença. Crítica o que há a sua volta, afirmando que tudo é falso porque é tudo artificial. Desta forma, para Nietzsche, o niilismo é o sintoma do adoecimento do homem.
O filósofo é bem objetivo nessa interpretação, mas, como não poderia ser diferente para o filósofo do martelo, ele bate forte e bem na base. Isso porque atribui aos patronos da filosofia a culpa por essa negação.
Mas, como Sócrates pode ser considerado niilista? Ora, vejamos. Aristóteles afirma sobre seus desacordos com Platão: “Sou amigo de Platão, mas sou mais amigo da verdade”. Ocorre que esse desacordo é exatamente a concepção de realidade entre eles. Aristóteles afirma que a existência está no mundo que vivemos, Platão (e Sócrates) negam o mundo material e afirmam que a realidade perfeita está em outro mundo.
Desde então a filosofia tem sido pautada em negar o mundo, e o homem. Nietzsche afirma que alguns pensadores na história da filosofia foram longe nos seus esforços para compreender o niilismo e produzir um efeito de evolução na humanidade, mas, segundo o autor, só é possível retornar dessa “viagem” mais saudável, viajando do seu jeito. Para ele, o niilismo é uma doença. Mas, o que isso quer dizer?
2 – Um pouco de contexto histórico
Antes de aprofundar o pensamento do maior expoente da corrente niilista, temos que estabelecer alguns fatos históricos:
- O niilismo surge para definir uma abordagem frente à vida, remontando aos eventos da Revolução Francesa, e se espalha pelo continente como forma de definir indiferença política e social.
- O termo passa a designar a corrente de pensamento contrária ao idealismo e à metafísica, corrente baseada no positivismo e no materialismo, e à crítica à ética e moral vigente.
- Nietzsche identifica e adere ao niilismo, dando sua contribuição na crítica à filosofia ocidental e ampliando a corrente, somando à crítica uma atitude propositiva.
- A discussão sobre o niilismo frutifica, principalmente, após a Primeira Guerra Mundial. Surgem linhas como o niilismo existencialista – o nada como constituição do ser, de Sartre e o niilismo absurdista –. A vida não tem sentido nem ordem, com Albert Camus.
- Deleuze interpreta da leitura que faz de Nietzsche, e se valendo do sentido da palavra nihil, que o niilismo pode ser atribuído a qualquer corrente filosófica que negue, totalmente ou em partes, a realidade. Daí a afirmação de que o niilismo surge com os sofistas (céticos e relativistas), mas também com os sistematizadores (Sócrates, Platão e Aristóteles) que negam em algum nível a realidade e que vivemos e o homem em sua plenitude.
3 – Formas de niilismo para Nietzsche
“Minha filosofia: platonismo revertido: quanto mais afastado do verdadeiro ente, tanto mais puro, belo, melhor. A vida no brilho da aparência como meta”
Nietzsche, Fragmento póstumo
Niilismo Passivo
Reconhecendo as consequências negativas das limitações impostas pelas concepções do pensamento socrático e da moral cristã, o niilismo passivo nega o mundo construído a partir disso. Limitar a existência criando um sentido artificial para ela (como o céu, o supremo bem, o mundo inteligível etc.) é desperdiçar a força vital do ser humano.
Ocorre que o mundo ocidental centrado na civilização europeia é herdeira dessas concepções. Negá-las é negar como é a vida e o homem europeu. Viver na expectativa ou em função de um mundo superior é mentir para si mesmo sobre si mesmo. Negar isso é negar a única concepção de homem consolidada ao longo da história no pensamento ocidental. É o vazio.
Niilismo ativo
O passo anterior é o sintoma de uma doença. O homem está doente de si mesmo, padeceu de esperança, de sentido, de limitações. O niilismo passivo é uma febre. O homem deve recuperar sua força vital, destruir a moral e qualquer concepção metafísica de existência. A vida não tem sentido, não tem motivo, não tem ordem. O niilista está no vazio agora.
Do vazio, construir. Deus morreu, não como personalidade, mas como todo o arcabouço metafísico que dá um sentido à vida, considerado falso pelo niilismo. O homem deve assumir sua capacidade de criação e produzir valores, transvalorar. Não podemos deixar de perceber como Nietzsche percebe a metafísica e a moral conectadas. Afinal, o comportamento humano está inserido naquilo que concebe existir.
4 – Deleuze e o Niilismo
“Eu vi descer sobre os homens uma grande tristeza. Os melhores entre ele se cansaram de suas obras. Uma doutrina surgiu, acompanhada de uma fé: ‘Tudo é vazio, tudo é igual, tudo foi!'”
Nietzsche, Assim Falou Zaratustra
Ávido leitor de Nietzsche, Gilles Deleuze conseguiu produzir uma sistematização do pensamento nietzschiano causando uma revitalização do niilismo. Sua interpretação insere no niilismo (como vimos antes) não só aqueles que se opõem às limitações da vida, mas aqueles que geram essa limitação, que é uma negação. Temos assim quatro tipos de niilismo:
Niilismo Negativo
Nietzsche é um profundo negador da dialética. Podemos chamar até mesmo de antidialético. A dialética admite a negação, a contradição na formulação do pensamento. Para Nietzsche não há conciliação entre sim e não.
Nossa incapacidade de compreender o mundo nos faz criar outro, falso, para o qual dizemos sim. Dizer sim ao outro mundo é dizer sim para a mentira, para a vida, é a negação absoluta. A filosofia socrática e, principalmente, o cristianismo representam esse sim/não. Sócrates e Jesus não foram mortos, se suicidaram, porque negaram a vida.
Niilismo reativo
Deus morreu. O homem reconheceu sua centralidade na existência. Mas não sabemos como fazer. Saímos da crisálida, mas ainda estamos à sua sombra. Deleuze interpreta que Nietzsche acredita que abandonamos o conteúdo divino, mas a forma cristianizada ainda segue. É a secularização do cristianismo.
Continuamos negando a vida, mas a razão agora é o dever, nossa racionalidade. Deus sai de cena e criamos uma entidade metafísica nova, “a humanidade”, que serve de justificativa para continuarmos negando o que temos de humano. Kant é o principal representante desse niilismo.
Para Kant a felicidade é o estado de quem alcança plenitude racional, onde tudo acontece conforme pensa e deseja. Ora, para Nietzsche, não há nada mais impossível que essa felicidade. Não há ordem no mundo que se conjugará a racionalidade humana. Essa felicidade, com ares de paraíso, é a negação da felicidade.
Niilismo passivo
“Ah, onde há ainda um mar onde possamos nos afogar?: eis como soa o nosso lamento – por sobre pântanos rasos. Em verdade ficamos cansados demais para morrer, ainda estamos acordados e prosseguimos vivendo – em sepulcros!”
Nietzsche, Assim Falou Zaratustra
O deus humanidade também não serviu, seguirá o mesmo destino do anterior. Com isso somos todos mortos-vivos, sofrendo e adoecendo cada vez mais. As esperanças acabaram, não há mais para onde ir, estamos resignados, só sobrou o vazio.
A resignação é a postura mais distante do niilismo desejável, segundo Nietzsche. Apesar disso, ela é fruto do melhor diagnóstico sobre a condição humana: não há nada lá fora, nem aqui dentro, só nós.
Schopenhauer é o grande expoente desse niilismo, um dos poucos pensadores poupados da fúria do martelo nietzschiano. Disse ele:
“No espaço infinito, inumeráveis esferas brilhantes. Em torno de cada uma delas giram aproximadamente uma dúzia de outras esferas menores iluminadas pelas primeiras e que, quentes em seu interior, estão cobertas de uma crosta rígida e fria sobre a qual uma cobertura lodosa deu origem a seres vivos que pensam; – eis aí a verdade empírica, o real, o mundo”
SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e como Representação
Um mundo nu, sem idealismos, nem transcendências, sem metafísica, imanente. Schopenhauer é um dos primeiros filósofos a pensar a irracionalidade. Mas, para ele, a essência da realidade era irracional. A vontade, a força motriz de criadora, que é também tudo (por isso, imanente) é a essência do ser humano.
Aqui o ser humano está cansado de existir, exaurido pelo constante desejo. De fato, para Nietzsche, o diagnóstico é preciso, mas a solução proposta, negar o desejo e a vontade, é aprofundar a crise.
Niilismo ativo
A vontade em Nietzsche é a vontade de potência. Nos realizamos quando damos vazão ao nosso lado irracional, pois, certamente, ele nos compõe. Nietzsche observa nas tragédias gregas uma representação bem acabada da condição humana, o apolíneo (autocentrado, racional, frio) e o dionisíaco (empático, desejante, incontido).
Estamos doentes porque, desde Sócrates, abandonamos nosso lado dionisíaco. A racionalidade extremada socrática que invade todos os aspectos do pensamento e contamina até as tragédias nos limita, nos mutila. A cura é a vontade. Assumir o que somos e realizar o que queremos nos faz humanos outra vez, mas como?
Nietzsche afirma que faremos isso através do super-homem. Ele não se afirma assim, nem afirma que será o homem de seu tempo. Mas propõe a questão: se chegamos a conclusão de que tudo é nada, seremos os últimos homens, os homens do fim, ou seremos o super-homem, o homem que superará?
Veja bem, desde Sócrates, passando pelo cristianismo, a filosofia atua como uma legisladora. Ela tira os pedaços da nossa humanidade afirmando: “isso não pode!”. Seguimos essas proibições, o que chamamos moral, tentando alcançar plenitude. Mas se é justamente os valores que nos impedem de nos realizar então temos que os superar.
Os valores não são nada, não têm sentido. Estão todos destruídos pelo martelo. O super-homem irá transvalorar os valores, criará outros, não repetidos, mas inéditos. A busca da salvação ou da certeza não será mais o guia, mas abraçaremos a incerteza da condição humana. Viveremos a tragédia.
“O maior desafio do século XXI, é resgatar o valor da vida, a maior ação política é incentivar a vontade de viver. A vida não precisa estar vinculada a um projeto de felicidade; a experiência da via, em si mesma, o jogo da vida se basta. Nietzsche afirma, em seu pensamento mais maduro, a necessidade de reconciliar o homem com o corpo, com a presença, com o tempo.”
Para Nietzsche, o trabalho da filosofia do seu tempo é de preparar a chegada do super-homem. Não esquecendo de que a moral é uma construção social, um consenso, uma convenção. Quando Nietzsche fala e transvaloração, ele aponta para um processo coletivo.
Ao fim podemos concluir que Nietzsche entende o niilismo como a “falta de fins”. Não há um objetivo para o futuro. O mais interessante é a influência da interpretação de Nietzsche da bíblia e de Jesus numa perspectiva histórica. Assim como Nietzsche filosofou a golpes de martelo, destruindo a moral e transvalorando na figura firme de Zaratustra, observamos a mesma dureza em Jesus e seu objetivo de instituir novos valores, transvalorar. Disse Ele: “Eu não vim trazer a paz, mas a espada”. Talvez seja possível afirmar que tanto Nietzsche quanto Jesus vieram para causar.