Cap. XLVIII / Terpsícore
Ao contrário do que ficou dito atrás, Flora não se aborreceu na ilha. Conjeturei mal, emendo-me a tempo. Podia aborrecer-se pelas razões que lá ficam, e ainda outras que poupei ao leitor apressado; mas, em verdade, passou bem a noite. A novidade da festa, a vizinhança do mar, os navios perdidos na sombra,
a cidade defronte com os seus lampiões de gás, embaixo e em cima, na praia e nos outeiros, eis aí aspectos novos que a encantaram durante aquelas horas rápidas.
Não lhe faltavam pares, nem conversação, nem alegria alheia e própria. Toda ela compartia da felicidade dos outros. Via, ouvia, sorria, esquecia-se do resto para se meter consigo. Também invejava a princesa imperial, que viria a ser imperatriz um dia, com o absoluto poder de despedir ministros e damas, visitas e requerentes, e ficar só, no mais recôndito do paço, fartando-se de contemplação ou de música. Era assim que Flora definia o ofício de governar. Tais ideias passavam e tornavam. De uma vez alguém lhe disse, como para lhe dar força: “Toda alma livre é imperatriz!”.
ASSIS, M. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1974.
No trecho, o narrador descreve Flora imersa em devaneios e contemplações distantes, sem se preocupar com as mudanças políticas e o fim iminente da monarquia. Sua atitude de contemplação e alienação reflete a desconexão da elite com a realidade política e social da época, como ironizado pelo narrador.