A psicanálise e a sexualidade humana
A definição de gênero
A questão da identidade de gênero
A desigualdade de gênero na sociedade
Um dos temas mais controversos da sociologia (se não o mais controverso), a discussão sobre questões de gênero tem sofrido diversos ataques e tentativas de silenciamentos em diversas esferas sociais (escola, família, mídia etc.). Também sofrem ataques aqueles que não se inserem nos padrões hegemônicos de comportamentos e afetos no interior da sociedade, sendo alvo de intolerância e violência. Conhecer melhor o assunto é fundamental para formar uma sociedade mais justa e democrática e é por isso que nos dedicaremos a discuti-lo.
Inicialmente influenciado pelo movimento feminista, o campo de estudo de gênero tem uma forte tradição no pensamento sobre a mulher, seus direitos e dinâmicas sociais do feminino. Entretanto, esse campo se expandiu e inclui debates sobre identidade e diferença, cultura, desigualdade, violência, sexualidade e outros. Uma das principais questões está direcionada a perpetuação de limitações de comportamento e afeto imposto a mulheres, bissexuais, homossexuais, transgêneros etc. em comparação à plena liberdade do padrão social de comportamento, homem heterossexual. Esse debate se direciona a compreender e identificar formas de opressão, em que estão fundamentadas e como surgem nos diferentes ambientes sociais (mídia, trabalho, escola etc.).
Freud, gênero e sexualidade
Os dos primeiros pensadores a inovar na concepção sobre gênero e sexualidade foi Freud. Para o pensador, todos passamos pelo estágio fálico, onde reconhecemos que somos homens e mulheres a partir do reconhecimento de possuir ou não um falo (pênis). Essa relação entre sexualidade e sexo biológico se estabelece também pela relação da criança com o pai ou a mãe. Assim aderimos ao comportamento masculino ou feminino. Freud atribui um conjunto definido de atitudes e comportamentos ao masculino e ao feminino pela posse de um falo ou pela “castração”, o que Simone de Beauvoir criticou usando o termo “destino anatômico”.
Apesar de popular na psicanálise, a teoria sobre gênero e sexualidade freudiana foi revista e criticada por pensadores feministas de diversas áreas. A explicação do comportamento ligado ao órgão genital perdeu força e outras teorias surgiram. Isso não significa que a explicação de Freud não seja importante para o tema. Veja, apesar de atribuir ao sexo biológico a adesão a comportamentos, Freud ensaia uma separação entre sexo e gênero, atribuindo ao segundo um estatuto psicossocial, mesmo que veja entre eles uma relação causal. É razoável pensar, pela explicação Freudiana, que as crianças, até passarem pelo complexo de Édipo e pelo estágio fálico, não tem gênero. Além disso, Freud desmistifica a homossexualidade como perversão e reconhece a existência da sexualidade infantil, passos importantes para “destabullizar” os temas e abrir terreno para discussões mais profundas.
Simone de Beauvoir e o segundo sexo
A crítica de Beauvoir e outras pensadoras extrapolaram a separação entre sexo e gênero, apontando principalmente para questões culturais. O ambiente social e educacional é responsável pela construção de padrões de comportamento e isto é imposto a meninos e meninas. Trata-se de manifestações biológicas (macho e fêmea) e de construções e expectativas sociais ancoradas nessas manifestações, mas que não são determinadas por elas. Feminino e masculino são, então, papeis sociais definidos culturalmente e que usam o corpo como marcador de atribuição dos papéis, macho se comporta como homem e fêmea se comporta como mulher, inclusive determinando o uso que farão deste corpo.
“Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Aqui as dimensões de natureza e cultura são retomadas para mostrar como ocorre o processo de construção da identidade de gênero. Inclusive, durante décadas, no interior desta discussão, usou-se o termo “papéis sociais do sexo”, que foi substituído por gênero por volta dos anos 70 na segunda onda do feminismo, com a intenção de superar os padrões de normalidade “homem e mulher”.
Sexo, Gênero e Sexualidade
Como podemos classificar esses termos que se confundem tanto no cotidiano? É provável que você já consiga definir o que é o que a partir daqui, mas precisamos tocar em alguns pontos ainda. Uma tentativa de tornar o assunto mais compreensível é entender os três termos como tipos ideais de Weber, classificações que servem como bússola na interpretação do mundo social, mas que forma alguma são definidores e limitadores de comportamento das pessoas nas relações. Possíveis conceituações são:
Sexo – Manifestação anatômica da pessoa, como seu corpo é. Usamos os termos “macho” e “fêmea” para definir a diferença biológica entre os indivíduos e como atuarão na reprodução da espécie. Quando falamos em humanos, temos manifestações que possuem atributos dos dois sexos. O termo hermafrodita não é mais usado pela sua carga pejorativa e tratamos essas pessoas como intersexo ou pessoas de sexo ambíguo.
Gênero – Construção psicossocial de comportamentos estabilizados socialmente, geralmente atribuídos como adequados a um sexo (macho – masculino / fêmea - feminino), que é mobilizado pelas pessoas nas relações sociais. Carregam desde adjetivos à usos do corpo, passando por gostos, gestos e atitudes. É nesse ponto que falamos sobre identidade de gênero, que é como a pessoa se sente em relação ao enquadramento nesses padrões, e expressão de gênero, que é como a pessoa segue esses padrões, ou os subverte, no interior da sociedade.
Sexualidade – Como se relacionam afetivamente as pessoas. Baseia-se na atração sexual, ou seja, na conexão sexoafetiva que os indivíduos constroem na sociedade em suas relações. É importante ressaltar que a sexualidade usa o sexo biológico como ponto de partida para sua definição, mas o sexo não é determinante na atração sexual. O que isso quer dizer? Quer dizer que, quando dizemos que um indivíduo é de orientação sexual homossexual, dizemos que ele sente atração pelo mesmo sexo biológico que o seu, mas não quer dizer que existe biologicamente um padrão de atração determinado pelo sexo biológico. Por isso, é errôneo tratar em termos de adequado e inadequado a atração seja lá pelo sexo que for.
Gênero e desigualdade
Um dos principais conceitos que definem a desigualdade entre gêneros é o patriarcado. De maneira geral o patriarcado é um sistema de poder centrado na figura do homem que legitima a dominação masculina nas esferas privada e pública e que justifica opressões e violências terríveis que são perpetuadas pela impunidade nos crimes cometidos. Ele se baseia na ideia de que o homem é superior à mulher e essa hierarquia se espalha para todas as áreas da sociedade. São exemplos da estrutura do patriarcado a exploração sexual das mulheres no turismo, as desigualdades entre gêneros no mercado de trabalho, a predominância da responsabilidade da gestão da vida doméstica sobre as mulheres e a exclusão da vida política. Uma possibilidade de análise do patriarcado é uma análise histórica das leis brasileiras. O código civil de 1916, por exemplo, submetia a mulher à dependência do marido. Em 1962 surgiu o Estatuto da mulher casada, formato de lei típico de proteção de grupos fragilizados, oprimidos ou subalternizados, como o ECA ou o Estatuto do Idoso.
É importante ressaltar que o patriarcado se estende como machismo/sexismo (discriminação de um gênero ou vários gêneros considerados não adequados) e como homofobia (discriminação/preconceito contra pessoas de orientação homossexual e, por extensão, a pessoas que não se enquadram no padrão heteronormativo. Essa discriminação se configura como uma hierarquia até para a masculinidade. Não basta ser homem, para exercer o pleno poder do patriarcado é preciso ser um tipo específico de homem. Expressões de masculinidade mais abertas a equidade e opressoras são consideradas desviantes e perdem em poder. Esse é um ponto importante nas pesquisas sobre gênero. Combater o preconceito não se trata de deixar de ser homem, mulher ou outro gênero, mas pensar a construção do gênero a partir das pessoas, com mais fluidez e liberdade, e menos a partir das instituições.