O que é cultura
Identidade cultural
Aculturação e herança cultural
Diversidade x Multiculturalismo
Patrimônio cultural
Contra-cultura
O conceito antropológico de cultura
Quando falamos de cultura o muito comum é que pensemos música, cinema, arte em geral, ou então que venha a nossa mente educação formal e instrução, formação acadêmica e por aí vai. Há também quem pense em cultura como um conjunto de práticas específico, um comportamento, uma etiqueta, sendo possível acumular essas características hierarquizando algumas como mais cultas e outras como menos cultas. Durante muito tempo o pensamento sobre os seres humanos e as sociedades partiram desse pressuposto, uma visão hierarquizada da cultura, pensando a cultura como um sinônimo do tempo civilização, um conjunto de práticas que o que há de melhor e de mais avançado em uma sociedade, sendo esse conjunto exclusivo de apenas alguns grupos humanos no mundo (potências europeias, no caso).
Quando o pensamento sobre cultura se organizou em ciência (Antropologia) essa abordagem foi a mais comum. Influenciados pelas ciências naturais já bem consolidadas, os pensadores da Antropologia aplicavam na humanidade noções de unicidade, previsibilidade, regularidade, evolução e desenvolvimento. Partindo de si mesmo como modelo de análise, os primeiros cientistas da cultura separavam as sociedades entre mais e menos evoluídas, tendo como noção de cultura todo o patrimônio intelectual e artístico produzido por suas sociedades. Essa postura deu base para a produção de teorias racistas e supremacistas. Os seres humanos foram classificados em diferentes raças biológicas, sendo a etíope (preta) a menos desenvolvida e a caucasiana (branca) a mais desenvolvida. Também houve espaço para projetos eugenistas, propostas de controle populacional e segregação que inibiam relações entre pretos e brancos e pobres e ricos, afirmando que características ruins como preguiça ou burrice (atribuídas aos pretos e pobres) eram biologicamente determinadas e hereditárias.
Etnocentrismo e relativismo cultural
Essa visão embasou a atuação política das grandes nações europeias durante o séc. XIX, justificando a opressão e invasão de sociedades consideradas menos evoluídas com a desculpa de acelerar o processo civilizacional desses grupos. Com o desenvolvimento da ciência Antropologia, essa abordagem foi identificada e criticada, recebendo o nome de etnocentrismo. Concepção muito comum entre os primeiros antropólogos, o etnocentrismo representa a posição daqueles que acreditam no fenômeno humano como uno e, em certa medida, homogêneo. Sendo assim as comunidades humanas seriam comparáveis ficando a diferença confinada a uma noção vertical de gradação, ou seja, as diferenças que se apresentam entre as sociedades se explicam pelo grau de evolução, já que todos vieram do mesmo lugar (sociedade primitiva) e fatalmente chegariam ao mesmo lugar (sociedade civilizada). Os pensadores etnocêntricos creem que sim, há valores culturais superiores e, portanto, há sociedades mais civilizadas do que outras. Elegendo como parâmetro suas melhores características (no caso europeu o desenvolvimento tecnológico), esses estudiosos eram incapazes de perceber a arbitrariedade de sua postura.
Por sua vez, o relativismo cultural, concepção predominante hoje entre os antropólogos, é aquela que crê que não, não há valores culturais superiores em si mesmos, uma vez que toda avaliação cultural depende do ponto de vista adotado, que, por sua vez, é sempre fruto de uma cultura específica. Nesta visão, o valor das diversas culturas, portanto, é sempre relativo. Essa abordagem crítica ao etnocentrismo foi crucial para a virada da Antropologia e do conceito de cultura. Antes pensada como um fenômeno único, possível apenas às sociedades desenvolvidas, a cultura passou a ser aquilo que define o ser humano como ser humano, ou seja, aquilo que fazemos exatamente porque somos humanos. Dessa forma, todas as sociedades passaram a ter e produzir cultura, cada uma com sua especificidade. O conceito de cultura se desenvolveu de tal forma que hoje pode ser apresentado na Antropologia como todo e qualquer elemento da vida humana que não seja fisiologicamente determinado, isto é, que não seja fruto de nossa própria constituição física, química e biológica. Enquanto o natural é aquilo que o homem realiza espontaneamente, em virtude do seu próprio ser, como respirar, por exemplo; o cultural, por sua vez, é aquilo que é criado pelo homem em sociedade e que, portanto, ele adquire através do seu convívio com os outros: a habilidade de escrever, por exemplo.
Vê-se aqui que, enquanto o sentido cotidiano de cultura é bastante restrito, o sentido antropológico de cultura é bem mais amplo, incluindo sim o comer pipoca e o lavar louça como fenômenos culturais. Por outro lado, é bom lembrar que, por mais que a visão antropológica parta de uma diferenciação entre natureza e cultura, estes dois domínios não são completamente separados, mas, ao contrário, por mais que distintos, estão sempre muito conectados no mundo real. O fato cultural da existência da língua portuguesa, por exemplo, só existe em virtude do fato natural da capacidade humana de falar.
O conceito de identidade e sua importância para a antropologia contemporânea
A proposta relativista e o posterior desenvolvimento do conceito de cultura permite perceber então que há variadas e inúmeras culturas ao redor do mundo, cada uma com seus respectivos valores, crenças, ideais, etc. Nessa perspectiva notamos como a cultura define nossa identidade, já que “identidade” é o conjunto de caracteres próprios e exclusivos com os quais se podem diferenciar pessoas, animais, plantas e objetos inanimados uns dos outros, quer diante do conjunto das diversidades, quer ante seus semelhantes.
Junto ao conceito de Identidade se discute a alteridade (ou outridade), uma concepção que parte do pressuposto básico de que todo o homem social interage e interdepende de outros indivíduos. Assim, como muitos antropólogos e cientistas sociais afirmam, a existência do "eu-individual" só é permitida mediante um contato com o “outro” (que em uma visão expandida se torna o Outro - a própria sociedade diferente do indivíduo). Dessa forma eu apenas existo a partir do outro, da visão do outro, o que me permite também compreender o mundo a partir de um olhar diferenciado, partindo tanto do diferente quanto de mim mesmo, sensibilizado que estou pela experiência do contato. Assim percebemos que a identidade é formada tanto pelo conjunto de práticas e características que assumimos como pelo conjunto que não assumimos.
Quando compreendemos isso, percebemos que o “outro”, o diferente, não é um “não eu” ou um “anti eu”, ele é um sujeito portador de dores e desejos, sofrimentos e realizações, que unicamente se difere por adotar para si um conjunto de práticas e características diverso do “meu”. O conceito de identidade se torna tão importante na compreensão do ser humano que o debate atual na Antropologia defende a substituição do conceito de cultura pelo de identidade.
Símbolos, aculturação e a polêmica da apropriação cultural
É possível perceber, também, que estas variadas culturas estão em contínuo processo de transformação e que muitas vezes entram em contato entre si, seja de modo pacífico ou conflitivo. A cultura é volátil, impermanente, ela muda as formas como se apresenta e guia seus membros. Quando duas ou mais culturas distintas entram em contato entre si, fundindo-se e se interpenetrando, estamos diante daquilo que os antropólogos chamam tecnicamente de aculturação.
Como falado antes, essa troca entre culturas pode ser pacífica ou conflitiva. Entretanto, um ponto a se ressaltar é a dinâmica de poder que ocorre entre grupos distintos. Normalmente uma elite social impõe sua forma de ser (cultura) aos outros integrantes da sociedade como a forma certa, o que pressupõe que manifestações culturais de grupos subalternizados são erradas. Como forma de afirmação, esses grupos se identificam nos seus símbolos culturais os atribuindo poder e prestígio (como, acessórios, penteados, modificações corporais etc.). Quando o grupo que forma a elite passa a utilizar desses elementos, considerando-os exóticos ou lucrativos, questiona-se a legitimidade desse uso. Isso porque se argumenta que esses símbolos passam a ser muitas vezes formas de resistência à opressão exercida pela elite e também porque seu uso fora do grupo social subalterno representa um esvaziamento do sentido daquele símbolo. A essa dinâmica de poder e trocas culturais se convencionou chamar apropriação cultural e o debate atual sobre o tema é amplo.
O termo aculturação ganhou esse prefixo porque os antropólogos do início do séc. XX compreendiam a cultura como as manifestações visíveis, os comportamentos dos indivíduos e grupos. Quando uma cultura “trocava” fenômenos com outra, muitos lamentavam os efeitos de perda cultural que significava assumir um comportamento diferente do original. Essa foi inclusive a postura de muitos pensadores em relação à expansão do capitalismo e globalização, fenômenos que promoveram uma padronização dos comportamentos ao redor do globo. Entretanto, com a virada da antropologia interpretativa de Clifford Geertz, a cultura passou a ser entendida como um código de significação, um aparato mental que atribui sentido a signos, tornando-os símbolos. Inspirados na sociologia weberiana da busca pelo sentido, esses antropólogos defendiam que o comportamento é importante, mas não tanto quanto o sentido atribuído pelo indivíduo a dado comportamento. Dessa forma, passar a se comportar como um grupo diferente não apaga a cultura, mas a transforma, pois aquele fenômeno novo é absorvido e passa a ter um significado no interior da própria cultura. Foi assim que o conceito de aculturação, apesar do prefixo, passou a definir a transformação cultural ocasionada do contato.
Diversidade, multiculturalismo e monoculturalismo
Por sua vez, uma vez ocorrida, a aculturação tem como consequência a concretização multiculturalismo ou do hibridismo cultural, que é precisamente a coexistência de várias matrizes culturais, no interior de um mesmo espaço, ao mesmo tempo. O fato de existirem várias culturas no mundo, mas em lugares diferentes ou épocas diferentes, não é multiculturalismo. Essa diferença pode ser interpretada como diversidade cultural, que é o reconhecimento da diferença sem incluir necessariamente a coexistência. O multiculturalismo só se dá no contexto de uma pluralidade coexistente e não distante.
Apesar do reconhecimento da cultura como um código simbólico, é importante ressaltar que o avanço tecnológico que permite o encurtamento das distâncias e a intensificação das relações sociais ocorre através de dinâmicas de poder, onde grupos humanos melhor posicionados na hierarquia mundial promovem a disseminação de seus modos de ser e estar. Isso significa dizer que, mesmo interpretando as culturas como um conjunto de símbolos e não de comportamentos, observamos que fenômenos como o capitalismo e globalização impulsionam uma padronização e homogeneização cultural. Reações nacionalistas de alguns grupos também promovem a homogeneização, onde imigrantes e refugiados são aceitos apenas se incorporados na dinâmica cultural do grupo majoritário. A esse fenômeno e sua mobilização política chamamos de monoculturalismo e políticas monoculturalistas.
Patrimônio cultural
A partir da Revolução Francesa houve uma mudança significativa no conceito de patrimônio. De propriedade privada de uma pessoa, família ou empresa, o termo adquire o sentido de propriedade coletiva. Passa-se, então, a considerar como patrimônio, a partir da Revolução Francesa, sobretudo monumentos que traziam a lembrança acerca do passado histórico, evitando o esquecimento histórico e salientando uma certa noção de ‘progresso”.
Dessa forma, a ideia de patrimônio passa a englobar tanto o aspecto material, como, por exemplo, monumentos que servem para que possamos recordar do nosso passado histórico, quanto o aspecto imaterial, como saberes, formas de expressão, celebrações e assim por diante. O conceito de patrimônio, ainda nesse sentido específico de monumentos, também esteve ligado à arte e à estética na medida em que deveria despertar no espectador a identidade, a beleza e a harmonia, no sentido ainda tradicional de obra de arte. De certa forma trata-se ainda de um conceito mais ou menos “elitista” de patrimônio, no sentido de que diversas manifestações populares ainda ficavam de fora do que era considerado como patrimônio.
A partir do século XX há uma mudança no conceito de patrimônio no sentido da sua ampliação. Passa-se a considerar como patrimônio não apenas como aquilo que pertence a cultura erudita, mas igualmente diversas manifestações populares que anteriormente não eram reconhecidas como patrimônio. Atualmente podemos dividir o conceito de patrimônio cultural em duas categorias: De um lado temos o chamado patrimônio material - que nos remete a construções, esculturas, obeliscos, a obras de arte, entre outros - e, de outro, temos o chamado patrimônio imaterial, que nos remete a regiões, comidas e bebidas típicas, manifestações religiosas, festividades etc.