O cronista ressentido
Reflexões sobre a imprensa
Paralelos sobre a contemporaneidade - Parte 1
Paralelos sobre a contemporaneidade - Parte 2
" A Cabra Vadia", de Nelson Rodrigues
Escritor, romancista, teatrólogo, jornalista, contista e cronista, Nelson Rodrigues trouxe a diversidade da produção artística ao longo da sua vida. Pernambucano, nascido no início do século XX, apresenta suas narrativas e reflexões sociais muito similares às propostas vistas ao longo das três fases do Modernismo Brasileiro, sendo classificado como Pós-Moderno e Contemporâneo.Em "A Cabra Vadia", o autor reúne 85 crônicas escritas ao longo dos anos de 1967 e 1968, e publicadas pelo Jornal "O Globo", sendo retratados assuntos diversos, mas voltados também ao período de ditadura militar, que ocorria no cenário brasileiro, uma vez que em 1968 é instituído o AI-5, período de maior repressão política.
Trecho da crônica "Ex- Covarde", presente na coletânea:
Entro na redação e o Marcelo Soares de Moura me chama. Começa: — "Escuta aqui, Nélson. Explica esse mistério." Como havia um mistério, sentei-me. Ele começa: — "Você, que não escrevia sobre política, por que é que agora só escreve sobre política?" Puxo um cigarro, sem pressa de responder. Insiste: — "Nas suas peças não há uma palavra sobre política. Nos seus romances, nos seus contos, nas suas crônicas, não há uma palavra sobre política. E, de repente, você começa suas "confissões". É um violino de uma corda só. Seu assunto é só política. Explica: — Por quê?"
Antes de falar, procuro cinzeiro. Não tem. Marcelo foi apanhar um duas mesas adiante. Agradeço. Calco a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro. Digo: — "É uma longa história." O interessante é que outro amigo, o Francisco Pedro do Couto, e um outro, Permínio Ásfora, me fizeram a mesma pergunta. E, agora, o Marcelo me fustigava: — "Por quê?" Quero saber: — "Você tem tempo ou está com pressa?" Fiz tanto suspense que a curiosidade do Marcelo já estava insuportável.
(...)
Começo assim a "longa história": — "Eu sou um ex-covarde." O Marcelo ouvia só e eu não parei mais de falar. Disse-lhe que, hoje, é muito difícil não ser canalha. Por toda a parte, só vemos pulhas. E nem se diga que são pobres seres anônimos, obscuros, perdidos na massa. Não. Reitores, professores, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. E também os jornais e as revistas, o rádio e a tv. Quase tudo e quase todos exalam abjeção.
Marcelo interrompe: — "Somos todos abjetos?" Acendo outro cigarro: — "Nem todos, claro." Expliquei-lhe o óbvio, isto é, que sempre há uma meia dúzia que se salve e só Deus sabe como. "Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo." E por que essa massa de pulhas invade a vida brasileira? Claro que não é de graça nem por acaso.
Nesse sentido, o sentimento de desprezo sobre os intelectuais e as formas de comunicação se dá a partir do medo. O medo de ser reacionário, parecer reacionário ou, de fato, ir contra os poderes já consolidados no contexto vigente. Em épocas de repressão política, muitos grupos eram criados com o intuito da defesa de liberdade, sendo comumente vistos nos meios acadêmicos, artísticos, frequentados pelo autor.. Nesse sentido, Nelson Rodrigues diz ser contra essa movimentação, colocando-se ao lado do governo totalitário. Sendo um homem com tais posicionamentos, é possível ver traços de conservadorismo, bem como de busca sobre alguns tradicionalismos que estavam em pauta, como a liberdade feminina, resistência contra opressões, etc.